Vamos aos fatos. Um adolescente negro foi espancado, amarrado pelo pescoço com um cadeado de bicicleta e deixado lá, nu.
O comentário da jornalista do SBT Rachel Sheherazade e seus ecos foram o que me motivaram a escrever sobre o assunto. Em seu comentário, a jornalista inicia suas palavras de forma preconceituosa e irônica: “O marginalzinho amarrado ao poste era tão inocente...” e finaliza lançando uma campanha: “faça um favor ao Brasil, adote um bandido!”, ridicularizando os defensores dos direitos humanos.
Os comentários que acompanhei via internet, em vários sítios, eram diversos. No entanto, assustou-me a grande parcela que apoiava a ação dos “justiceiros” e aplaudia o comentário descabido e infeliz da apresentadora.
Primeiramente, quero deixar bem claro que sou a favor da legítima defesa ao cidadão, bem como a liberação ao porte de arma aos civis. Isso pode soar estranho aos mais desinformados. Mas explico melhor: a defesa é um direito inato ao cidadão, garantida constitucionalmente; quanto ao uso de armas de fogo para tal defesa de direito, depois escrevo melhor sobre o assunto, mas já adiantando a conclusão a respeito, o desarmamento civil não diminuiu índices de criminalidade em NENHUM país do mundo.
Não, eu não sonho com uma sociedade na qual todos portem uma arma e na menor das intrigas resolva o problema com dois disparos. Quero uma sociedade que tenha Estado (justo e igualitário) e povo (não plateia).
Voltando ao caso do menor negro. Se ele roubou ou teve a tentativa de furto frustrada, estava errado? Claro, óbvio, sem sombra de dúvidas! Isso dá o direito de um grupo de jovens de classe média, autointitulados de “justiceiros da moto” pegaram o adolescente negro, o espancarem e o amarrem nu em via pública? É mais que notório que NÃO!
Ah, mas o cara estava errado, infringindo a lei, é um preto vagabundo, favelado - diriam os desmiolados com cultura e senso crítico formados a partir de novelas e realitys shows.
A questão é complexa, delicada e requer uma análise profunda dos fatos, ações e consequências.
Não vou buscar o histórico de vida desse adolescente preto (preto é cor, negro é eufemismo para preconceito encubado!). Não vou dizer que são altas as chances de ele não ter tido acesso a estudo público de qualidade, que o Estado se omitiu quando ele, talvez, tenha sofrido violência policial ou que, quem sabe, ele pode ter se sentido um sub-humano quando um dia tentou seguir o caminho reto e foi ridicularizado e humilhado por ser negro e estar vendendo queijinho ou óculos falsos nas praias e calçadas de Copacabana, depois de gastar 4h do dia só para sair e voltar para “casa” no eficiente transporte público brasileiro. Esse mesmo preto que talvez não tenha pais. Pode ter perdido o pai que, ao voltar pedalando para casa, foi atropelado por um filho de um (ex?) bilionário e quem sabe sua mãe morreu de dengue na fila do SUS. Talvez ele tenha se cansado de assistir aos familiares perderem suas vidas em desmoronamentos, à espera da chegada do Programa Minha Casa Minha vida (irônico, não?!). Ou quem sabe os avós desse preto desgraçado, marginalzinho – como diria Rachel Sheherazade - , tenham saído do agreste sertanejo nordestino cansado da ausência do Estado, da fome, da sede. E quem sabe, por um milagre de Deus, esse pobre preto possa um dia ter tido um momento de reflexão ao ler que o Governo Brasileiro investiu, em Cuba, mais de 2 BILHÕES com o Programa mais Médicos e na construção do Porto de Mariel. Quem sabe esse preto tenha entendido que Cuba, país socialista, é um bom lugar, porque o Governo está “investindo” lá, e não aqui, nosso dinheiro. Quem sabe ele tenha pretendido não roubar, mas como dizem os socialistas: dividir riquezas.
Não, eu não tenho a intenção de sensibilizar ninguém. O que quero é que o cidadão pense, analise e reflita antes de comentar: “bandido bom é bandido morto”, “menos um”, “vai roubar no inferno”, “senta no colo do capeta”... Repito, ele estava errado ao cometer uma infração? Sim! Mas isso não dá o direito de ninguém, além do poder judiciário, julgá-lo. Isso não dá o direito de três ou quatro pessoas que tiverem, talvez, uma infância confortável, regada a todinho e que elaboram o conceito de justiça por meio de horas e horas assistindo Liga da Justiça e Capitão América a captura-lo, espanca-lo e amarra-lo nu na rua. Isso é volta à barbárie. Isso é inaceitável.
Quanto ao comentário infeliz e néscio da apresentadora do SBT, constitui, em minha opinião, um desfavor à sociedade. Estudo e instrução ela tem, claro. Se quisesse, poderia levar o assunto a uma análise mais profunda e procurar soluções e alternativas aos problemas ao invés de parabenizar os criminosos que fizeram “justiça” com as próprias mãos. Sim, criminosos, infringiram o artigo 129 do Código Penal Brasileiro.
Vai uma reflexão aos que apoiam a iniciativa dos “justiceiros”. Eles viram uma infração sendo cometida, certo? Em suas mentes, julgaram aquilo errado e instantaneamente resolveram agir, certo? Subiram em suas motos e deram uma “lição” naquele preto infeliz. Já pensaram se essa onda se propaga?
Eu fico extremante chateado quando alguém não apto/licenciado estaciona em vaga destinada a deficiente físico. O que eu devo fazer? Descer do carro, esmurrar a cara do cidadão, quebrar suas pernas, deixa-lo paraplégico e ensinar, desse modo, que não se deve estacionar em vaga para deficiente?
Ou quando vejo alguém bebendo e dirigindo, devo atropelá-lo, descer do carro, pegar uma garrafa de vodca, batê-la inúmeras vezes em sua cabeça e dizer que não se pode beber e dirigir?
Entende que o problema é grave? Ao se aceitar e apoiar esse tipo de conduta, abre-se espaço para condutas diversas e divergentes. Isso porque a justiça com as próprias mãos parte de um julgamento particular, íntimo e sem base legal. E, obviamente, cada cidadão tem um julgamento diferente.
Gostaria de ver “justiceiros” cerceando a casa de políticos corruptos, amarrando, espancando líderes de desviam dinheiro da merenda escolar, do SUS, da Segurança Pública...
Bater em preto pobre que rouba bicicleta é fácil, né? Combater quem rouba a Nação há milhares de anos, ah... deixa pra lá. Rouba mas faz. Logo tem Copa, vamos nos divertir!!! Opa, tem novela nova começando e o BBB tá esquentando...